O DISCURSO DA SERVIDÃO

VOLUNTÁRIA

ou O CONTRA UM

Manuscrito De Mesmes

TEXTO ESTABELECIDO

POR PIERRE LÉONARD

Em Ter vários senhores nenhum bem sei, Que um seja o senhor, e que um só seja o rei.

Dizia Ulisses em Homero, falando em público. Se nada mais tivesse dito, senão: Em Ter vários

senhores nenhum bem sei, estaria tão bem dito que bastaria; mas se para raciocinar precisava dizer que a

dominação de vários não podia ser boa, pois o poderio de um só é duro e insensato tão logo tome o título

de senhor, em vez disso foi acrescentar o contrário:

Que um só seja o senhor, e que um só seja o rei.

Talvez fosse preciso desculpar Ulisses, que possivelmente precisava então de usar essa linguagem para

acalmar a revolta do exército, conformando, creio eu, suas palavras mais ao tempo que à verdade. Mas

para falar com conhecimento de causa, é um extremo infortúnio estar-se sujeito a um senhor, o qual

nunca se pose se certificar de que seja bom, pois sempre está em seu poderio ser mau quando quiser; e

em Ter vários senhores, quantos se tiver quantas vezes se é extremamente infeliz. Se por hora não quero

debater essa questão tão tormentosa - se as outras formas de república são melhores do que a monarquia -

gostaria ainda de saber, antes de pôr em dúvida a posição que a monarquia deve Ter entre as repúblicas,

se ela deve Ter alguma, pois é difícil acreditar que haja algo público nesse governo onde tudo é de um.

Mas tal questão está reservada para um outro tempo e exigiria um tratado à parte, ou melhor, acarretaria

por si mesma todas as disputas políticas.

Por hora gostaria apenas de entender como poder ser que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades,

tantas nações suportam às vezes um tirano só, que tem apenas o poderio que eles lhe dão, que não tem o

poder de prejudicá-los senão enquanto tem vontade de suportá-lo, que não poderia fazer-lhes mal algum

senão quando preferem tolerá-lo a contradizê-lo. Coisa extraordinária, por certo; e porém tão comum que

se deve mais lastimar-se do que espantar-se ao ver um milhão de homens servir miseravelmente, com o

pescoço sob o jugo, não obrigados por uma força maior, mas de algum modo (ao que parece) encantados

e enfeitiçados apenas pelo nome de um, de quem não devem temer o poderio pois ele e só, nem amar as

qualidades pois é desumano e feroz para com eles. Entre nós, homens, a fraqueza é tal que

freqüentemente precisamos obedecer à força; há necessidade de contemporizar, nem sempre podemos ser

os mais fortes. Portanto, se uma nação é obrigada pela força da guerra a servir a um, como a cidade de

Atenas aos trinta tiranos, não é de se espantar que ela sirva, mas de se lamentar o acidente; ou melhor,

nem espantar-se nem lamentar-se e sim carregar o mal pacientemente e reservar-se para melhor fortuna

no futuro.

Nossa natureza é de tal modo feita que os deveres comuns da amizade levam uma boa parte do curso de

nossa vida; é razoável amar a virtude, estimar os belos feitos, reconhecer o bem de onde o recebemos, e

muitas vezes diminuir nosso bem-estar para aumentar a honra e a vantagem daquele que se ama e que

merece. Em conseqüência, se os habitantes de um país encontraram algum grande personagem que lhes

tenha dado provas de grande previdência para protegê-los, grande audácia para defendê-los, grande

cuidado para governá-los, se doravante cativam-se em obedecê-lo e se fiam tanto nisso a ponto de lhe dar

algumas vantagens, não sei se seria sábio tirá-lo de onde fazia o bem para coloca-lo num lugar onde

poderá malfazer; mas certamente não poderia deixar de haver bondade em não temer o mal de quem só

se recebeu o bem.

Mas, ó Deus, o que pode ser isso? Como diremos que isso se chama? Que infortúnio é esse? Que vício,

ou antes, que vício infeliz ver um número infinito de pessoas não obedecer mas servir, não serem

governadas mas tiranizadas, não tendo nem bens, nem parentes, mulheres nem crianças, nem sua própria

vida que lhes pertença; aturando os roubos, os deboches, as crueldades, não de um exército, de um

campo bárbaro contra o qual seria preciso despender seu sangue e sua vida futura, mas de um só; não de

um Hércules nem de um Sansão, mas de um só homenzinho, no mais das vezes o mais covarde e

feminino da nação, não acostumado à pólvora das batalhas mas com muito custo à areia dos torneios,

incapaz de comandar os homens pela força mas acanhado para servir vilmente à menor mulherzinha.

Chamaremos isso de covardia? Diremos que os que servem são covardes e moídos? É estranho, porém

possível, que dois, três, quatro não se defendam de um; poder-se-á então dizer com razão que é falta de

fibra. Mas se cem, se mil agüentam um só, não se diria que não querem, que não ousam atacá-lo, e que

não se trata de covardia? Ora, naturalmente em todos os vícios há algum limite além do qual não podem

passar; dois podem temer um e talvez dez; mas mil, um milhão, mil cidades, se não se defendem de um,

não é covardia, que não chega a isso, assim como a valentia não chega a que um só escale uma fortaleza,

ataque um exército, conquiste um reino. Então, que mostro de vício é esse que ainda não merece o título

de covardia, que não encontra um nome feio o bastante, que a natureza nega-se Ter feito, e a língua se

recusa nomear?

Que se ponham cinqüenta mil homens em armas de um lado, outro tanto de outro, que sejam alinhados

em posição de combate, que acabem encontrando-se, uns livres combatendo por sua franquia, os outros

para tirá-la deles: a quem por conjectura será prometida a vitória, quem se pensará que vai mais

galhardamente à luta, os que esperam como recompensa de suas penas a manutenção de sua liberdade ou

os que não podem esperar outro salário dos golpes que dão ou que recebem senão a servidão de outrem?

Uns têm sempre diante dos olhos a felicidade da vida passada, a espera de alegria semelhante no futuro;

não se lembram tanto desse pouco que suportam enquanto dura uma batalha, mas do que lhes será

conveniente suportar para sempre, eles, seus filhos e toda a posteridade; os outros nada têm que os

encoraje senão uma pontinha de cupidez, que de repente some diante do perigo e que ao que parece não

pode ser tão ardente a ponto de apagar-se à menor gota de sangue que saia de suas feridas. Nas tão

famosas batalhas de Milcíades, de Leônidas, de Temístocles, que ocorreram há dois mil anos e que ainda

hoje estão tão frescas na memória dos livros e dos homens como se fosse ontem, que ocorreram na

Grécia para o bem dos Gregos e exemplo para o mundo inteiro - o que pensar que deu a tão pouca gente,

como eram os Gregos, não o poder, mas a fibra para sustentar a força de tantos navios que o próprio mar

estava carregado, para derrotar tantas e tão numerosas nações que o esquadrão dos Gregos não teria

bastado se fossem precisos capitães aos exércitos dos inimigos, senão que, ao que parece, naqueles dias

gloriosos, não se tratava da batalha dos Gregos contra os Persas mas da vitória da liberdade sobre a

dominação, da franquia sobre a cobiça?

É estranho ouvir falar da bravura que a liberdade põe no coração daqueles que a defendem; mas o que,

em todos os países, em todos os homens, todos os dias, faz com que um homem trate cem mil como

cachorros e os prive de sua liberdade? Quem acreditaria nisso se em vez de ver apenas ouvisse dizer? E

se se dissesse que isso só ocorria em países estranhos e terras longínquas, quem não pensaria que era

inventado e achado e não verdadeiro? No entanto, não é preciso combater esse único tirano, não é preciso

anulá-lo; ele se anula por si mesmo, contanto que o país não consinta a sua servidão; não se deve tirar-lhe

coisa alguma, e sim nada lhe dar; não é preciso que o país se esforce a fazer algo para si, contanto que

nada faça contra si. Portanto são os próprios povos que se deixam, ou melhor, se fazem dominar, pois

cessando de servir estariam quites; é o povo que se sujeita, que se degola, que, tendo a escolha entre ser

servo ou ser livre, abandona sua franquia e aceita o jugo; que consente seu mal - melhor dizendo,

persegue-o. Eu não o exortaria se recobrar a liberdade lhe custasse alguma coisa; como o homem pode

Ter algo mais caro que restabelecer-se em seu direito natural e, por assim dizer, de bicho voltar a ser

homem? Mas ainda não desejo nele tamanha audácia, permito-lhe que prefira não sei que segurança de

viver miseravelmente a uma duvidosa esperança de viver a sua vontade. Que! Se para Ter liberdade basta

desejá-la, se basta um simples querer, haverá nação no mundo que ainda a estime cara demais, podendo

ganhá-la com uma única aspiração e que lastime sua vontade para recobrar o bem que deveria resgatar

com seu sangue - o qual, uma vez perdido, toda a gente honrada deve estimar a vida desprezível e a

morte salutar? Como o fogo de uma pequena chama torna-se grande e sempre cresce, e quanto mais

lenha encontra mais está disposto a queimar; e sem que se jogue água para apagá-lo, é só não pôr mais

lenha que ele, não tendo mais o que consumir, consome-se a si mesmo e vem sem força alguma, e não

mais se lhes dá, quanto mais são servidos, mais se fortalecem, e se tornam cada vez mais fortes e

dispostos a tudo aniquilar e destruir; e se nada se lhes dá, se não se lhes obedece, sem lutar, sem golpear,

ficam nus e desfeitos, e não são mais nada, como o galho se torna seco e morto quando a raiz não tem

mais humor ou alimento.

Para adquirir o bem que querem, os audaciosos não temem o perigo, os avisados não rejeitam a dor; os

covardes e embotados não sabem suportar o mal nem recobrar o bem, limitam-se a aspirá-los, e a virtude

de sua pretensão lhes é tirada por sua covardia; por natureza fica-lhes o desejo de obtê-lo. esse desejo,

essa vontade de aspirar a todas as coisas que, uma vez adquiridas, os tornariam felizes e contentes, é

comum aos sensatos e aos indiscretos, aos corajosos e aos covardes. Resta dizer uma única coisa, a qual

não sei como falece natureza aos homens para desejá-la. É a liberdade, todavia um bem tão grande e tão

aprazível que, uma vez perdido, todos os males seguem de enfiada; e os próprios bens que ficam depois

dela perdem inteiramente seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão. Só a liberdade os homens não

desejam; ao que parece não há outra razão senão que, se a desejassem, tê-la-iam; como se se recusassem

a fazer essa; bela aquisição só porque ela é demasiado fácil.

Pobres e miseráveis povos insensatos, nações obstinadas em vosso mal e cegas ao vosso bem! Deixais

levar, à vossa frente, o mais belo e o mais claro de vossa renda, pilhar vossos campos, roubar vossas

casas e despojá-las dos móveis antigos e paternos; viveis de tal modo que não podeis vos gabar de que

algo seja vosso; e pareceria ser agora uma grande fortuna para vós conservar a meias vossos bens, vossas

famílias e vossas vidas vis; e todo esse estrago, esse infortúnio, essa ruína vos advêm não dos inimigos

mas sim, por certo, do inimigo, e daquele que engrandeceis, por quem ides tão valorosamente à guerra,

para a grandeza de quem não vos recusais a apresentar vossas pessoas à morte. Aquele que vos domina

tanto só tem dois olhos, só tem duas mãos, só tem um corpo, e não tem outra coisa que o que tem o

menor homem do grande e infinito número de vossas cidades, senão a vantagem que lhe dais para

destruir-vos. De onde tirou tantos olhos com os quais vos espia, se não os colocais a serviço dele? Como

tem tantas mãos para golpear-vos, se não as toma de vós? Os pés com que espezinha vossas cidades, de

onde lhe vêm senão dos vossos? Como ele tem algum poder sobre vós, senão por vós? Como ousaria

atacar-vos se não fôsseis receptadores do ladrão que vos pilha, cúmplices do assassino que vos mata, e

traidores de vós mesmos? Semeais vossos frutos para que deles faça o estrago; mobiliais e encheis vossas

casas para alimentar suas pilhagens; criais vossas filhas para que ele tenha com que embebedar sua

luxúria, criais vossos filhos para que ele faça com eles o melhor que puder, leve-os em suas guerras,

conduza-os à carnificina, torne-os ministros de suas cobiças e executores de suas vinganças; na dor

arrebentais vossas pessoas para que ele possa mimar-se em suas delícias e chafurdar nos prazeres sujos e

vis; ficais mais fracos para torná-lo mais forte e rígido mantendo mais curta a rédea; e de tantas

indignidades - que os próprios bichos ou não as sentiriam ou não a suportariam - podeis vos livrar se

tentais, não vos livrar mas apenas querer fazê-lo. decidi não mais servir e sereis livres; não pretendo que

o empurreis ou sacudais, somente não mais o sustentai, e o vereis como um grande colosso, de quem

subtraiu-se a base, desmanchar-se com seu próprio peso e rebentar-se.

Mas os médicos certamente aconselham que não se ponha a mão nas feridas incuráveis; e não sou

sensato ao querer pregar isso ao povo que há muito perdeu todo conhecimento e que, por não sentir mais

o seu mal, bem mostra que sua doença é mortal. Por conjectura procuremos então, se pudermos achar,

como enraizou-se tão antes essa obstinada vontade de servir que agora parece que o próprio amor da

liberdade não é tão natural.

Em primeiro lugar creio não haver dúvida de que, se vivêssemos com os direitos que a natureza nos deu e

com as lições que nos ensina, seriamos naturalmente obedientes aos pais, sujeitos à razão e servos de

ninguém. Da obediência que cada um, sem outra advertência que a de sua natureza, presta a seu pai e sua

mãe todos os homens testemunham, cada um por si. Da razão que nasce conosco ou não, o que é uma

questão debatida a fundo pelos acadêmicos e abordada por toda a escola dos filósofos, por ora não

pensaria falhar ao dizer o seguinte: há em nossa alma alguma semente natural de razão que, mantida por

bom conselho e costume, floresce em virtude e, ao contrário, freqüentemente sufocada, aborta, não

podendo enfrentar os vícios sobrevindos. Mas, por certo se há algo claro e notório na natureza, e ao qual

não se pode ser cego é que a natureza, ministra de deus e governante dos homens, fez-nos todos da

mesma forma e, ao que parece, na mesma fôrma, para que nos , para que nos entreconhecêssemos todos

como companheiros, ou melhor, como irmãos. E se, fazendo as partilhas dos presentes que ela nos dava,

cedeu alguma vantagem de seu bem ao corpo ou no espírito, a uns mais que aos outros, no entanto não

entendeu colocar-nos neste mundo como em um campo cerrado e não enviou para cá os mais fortes nem

os mais espertos como bandidos armados numa floresta, para aí dominar os mais fracos; mas, antes, é de

se crer que, atribuindo assim as partes maiores a uns, aos outros as menores, queria fazer lugar ao afeto

fraternal para que ele tivesse onde ser empregado, tendo uns o poderio de dar ajuda, os outros

necessidade de recebê-la. E de resto, se essa boa mãe deu-nos a todos a terra inteira por morada,

alojou-nos todos na mesma casa, figurou-nos todos no mesmo padrão, para que cada um pudesse

mirar-se e quase reconhecer um no outro; se ela nos deu a todos o grande presente da voz e da fala para

convivermos e confraternizarmos mais, e fazermos, através da declaração comum e mútua de nossos

pensamentos, uma comunhão de nossas vontades; e se tratou por todos os meios de estreitar e apertar tão

forte o nó de nossa aliança e sociedade; se em todas as coisas mostrou que ela não queria tanto fazer-nos

todos unidos mas todos uns - não se deve duvidar de que sejamos toso naturalmente livres, pois somos

todos companheiros; e não pose cair no entendimento de ninguém que a natureza tenha posto algum em

servidão, tendo-nos posto todos em companhia.

Mas em verdade de nada serve debater se a liberdade é natural, pois não se pode manter alguém em

servidão sem malfazer e nada há mais contrário ao mundo que a injúria, posto que a natureza é

completamente razoável. Portanto, resta à liberdade ser natural do mesmo modo que, no meu entender,

nascemos não somente de posse de nossa franquia mas também com afeição para defendê-la. Ora, se por

acaso temos alguma dúvida a respeito e abastardamo-nos tanto que não podemos reconhecer nossos bens

assim como nossas nativas afeições, será preciso que eu vos faça a honra que é vossa e, por assim dizer,

alce os bichos brutos ao púlpito para ensinar-vos vossa natureza e condição. Os bichos -valha-me Deus! -

se os homens não se fizerem de surdos, gritam-lhes: viva a liberdade! Entre eles há vários que morrem

logo que são capturados, como o peixe que abandona a vida ao mesmo tempo que a água; do mesmo

modo deixam a luz e não querem sobreviver à sua franquia natural. Se os animais tivessem entre si

algumas preeminências, fariam destas sua nobreza. Os outros, dos maiores aos menorzinhos, quando são

capturados resistem tanto com as unhas, os chifres, o bico e os pés que declaram o quanto prezam o que

perdem; uma vez capturados dão-nos tantos sinais notórios do conhecimento que têm de seu infortúnio,

que é bonito de se ver que doravante há mais langor que vida, e que continuam vivendo mais para

lamentar sua liberdade perdida do que para se comprazer na servidão. Que outra coisa quer dizer o

elefante - que, tendo se defendido até não poder mais, não vendo mais finalidade nisso, encontrando-se

na iminência de ser capturado, crava suas mandíbulas e quebra seus dentes nas árvores - senão que seu

grande desejo de permanecer livre como é inspira-o e o aconselha a negociar com os caçadores se ficará

livre a troco de seus dentes e se será autorizado a dar seu marfim e pagar esse resgate por sua liberdade?

Cevamos o cavalo desde que nasce para acostumá-lo a servir; e embora saibamos acariciá-lo tão bem,

quando está sendo domado ele morde o freio, escoiceia contra a espora, como, parece para mostrar à

natureza e assim ao menos testemunhar que, se serve, não é por sua vontade, mas por nossa imposição. O

que dizer então?

Até os bois gemem sob o peso do jugo; e na gaiola os pássaros se debatem - como eu disse outrora

passando o tempo em nossas rimas francesas. Pois escrevendo a ti, ó Longa, temo misturar meus versos

que nunca te leio para que, aparentando contentamento, não me faças sentir-me todo glorioso. Em suma,

se todas as coisas que têm sentimento, assim que os têm, sentem o mal da sujeição e procuram a

liberdade; se os bichos sempre feitos para o serviço do homem só conseguem acostumar-se a servir com

o protesto de um desejo contrário - que mau encontro foi esse que pôde desnaturar tanto o homem, o

único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o

desejo de retomá-lo?

Há três tipos de tiranos: uns obtêm o reino por eleições do povo; outros pela força das armas; outros por

sucessão de sua raça. Como se sabe bem, os que o adquiriram pelo direito da guerra comportam-se nele

como se estivessem (costuma-se dizer) em terra conquistada. Comumente os que nascem reis não são

melhores, pois tendo nascido e sido criados no seio da tirania sugam a natureza do tirano com o leite, e

agem com os povos a eles submetidos como com seus servos hereditários: e segundo a compleição a que

estão mais inclinados, são avaros ou pródigos, tratando o reino como à sua herança. Parece-me que

aquele a quem o povo deu o estado deveria ser mais suportável e creio que o seria; mas assim que se vê

elevado acima dos outros, lisonjeado com um não sei quê que chamam de grandeza, decide não sair mais

- comumente ele age para passar a seus filhos o poderio que o povo lhe outorgou; e desde que adotaram

essa opinião, é estranho como superam os outros tiranos em vícios de todo tipo e até em crueldade, não

vendo outro meio de garantir a nova tirania senão estreitando bastante a servidão e afastando tanto seus

súditos da liberdade que, embora sua lembrança seja fresca, possam fazer com que a percam. Assim, para

dizer a verdade, vejo que existe entre eles alguma diferença; mas escolha nenhuma vejo; pois se diversos

são os meios de aos reinados chegar, quase sempre semelhante é maneira de reinar. Os eleitos os tratam

como se tivessem pegado touros para domar; os conquistadores os consideram presa sua; os sucessores

pensam tratá-los como seus escravos naturais.

A propósito, se porventura nascesse hoje alguma gente novinha, nem acostumada à sujeição nem atraída

pela liberdade, que de uma e outra nem mesmo o nome soubesse, se lhe propusessem ser servos ou

livres, com que leis concordaria? Não há dúvida de que prefeririam somente à razão obedecer do que a

um homem servir; a menos que fosse como a de Israel que, sem coerção e nenhuma precisão, deu a si

mesma um tirano. Povo cuja história nunca leio sem enorme indignação, a ponto de quase tornar-me

desumano, por rejubilar-me com tantos males que lhe sucederam. Mas certamente para que todos os

homens, enquanto têm algo de homem, deixem-se sujeitar, é preciso um dos dois: que sejam forçados ou

iludidos. Forçados pelas armas estrangeiras, como Esparta ou Atenas pelas forças de Alexandre; ou pelas

facções, como havia se tornado a Senhoria de Atenas nas mãos de Pisístrato. Por ilusão, eles muitas

vezes perdem a liberdade; mas nisso não são enganados por outrem com a freqüência com que são

iludidos por si mesmos. Como o povo de Siracusa, principal cidade da Sicília (dizem-me que hoje se

chama Saragoça), que, na iminência de guerras, reparando irrefletidamente apenas no perigo presente,

elevou a tirano Dionísio Primeiro e encarregou-o de conduzir o exército; e não atinou que o havia

engrandecido tanto que quando esse patife voltou vitorioso, fez-se de capitão rei, e de rei tirano, como se

não tivesse vencido seus inimigos mas seus cidadãos. É incrível como o povo, quando se sujeita, de

repente cai no esquecimento da franquia tanto e tão profundamente que não lhe é possível acordar para

recobrá-la, servindo tão francamente e de tão bom grado que ao considerá-lo dir-se-ia que não perdeu sua

liberdade e sim ganhou sua servidão. É verdade que no início serve-se obrigado e vencido pela força;

mas os que vêm depois servem sem pesar e fazem de bom grado o que seus antecessores haviam feito

por imposição. Desse modo os homens nascidos sob o jugo, mais tarde educados e criados na servidão,

sem olhar mais longe, contentam-se em viver como nasceram; e como não pensam Ter outro bem nem

outro direito que o que encontraram, consideram natural a condição de seu nascimento. E no entanto não

há herdeiro tão pródigo e despreocupado que às vezes não corra os olhos nos registros de seu pai para ver

se goza de todos os direitos de sua herança ou se não o usurparam ou a seu predecessor. Mas o costume,

que por certo tem em todas as coisas um grande poder sobre nós, não possui em lugar nenhum virtude tão

grande quanto a seguinte: ensinar-nos a servir - e como se diz de Mitridates que se habituou a tomar

veneno - para que aprendamos a engolir e não achar amarga a peçonha da servidão. Não se pode negar

que a natureza tem em nós parte bastante para puxar-nos para onde quer e nos reconhecer bem ou mal

nascidos; porém, maldita seja a natureza se se deve confessar que ela tem em nós menos poder do que o

costume - pois por melhor que seja, o natural se perde se não é cultivado - e que o alimento sempre nos

conforma à sua maneira. As sementes do bem que a natureza põe em nós são tão miúdas e escorregadias

que não podem suportar o menor choque do alimento contrário: abastardam-se mais facilmente do que se

mantêm, dissolvem-se e se anulam tanto quanto as árvores frutíferas que têm um natural próprio que

conservam se as deixam crescer, mas logo abandonam para dar outros frutos estranhos e não os seus

próprios se as enxertam. Cada erva tem sua propriedade, seu natural e singularidade; todavia o gelo, o

tempo, a terra ou a mão do jardineiro nela aumentam ou diminuem muito de sua virtude: a planta que se

viu num lugar, noutros não se consegue reconhecer. Quem visse os Venezianos - punhado de gente

vivendo tão livremente que o pior deles não almejaria ser o rei de todos, nascidos e criados de tal modo

que não reconhecem nenhuma ambição senão a de serem os melhores para vigiar e mais cuidadosamente

tomar conta do mantimento da liberdade; de tal modo ensinados e formados desde o berço que não

aceitariam todas as outras alegrias da terra para perder a menor parcela de sua franquia - quem tivesse

visto, digo, esses personagens e de lá fosse para as terras daquele que chamamos grão-senhor, ao ver ali

gente que só quer Ter nascido para servi-lo e que para manter seu poderio abandona a vida, pensaria que

estes e os outros têm um mesmo natural ou, em vez, estimaria que, tendo saído de uma cidade de

homens, entrar num parque de bichos? Dizem que Licurgo, o governante de Esparta, criara dois cães

irmãos, ambos amamentados com o mesmo leite, um engordado na cozinha, o outro acostumado pelos

campos ao som da trompa e do cornetim, querendo mostrar ao povo lacedemônio que os homens são

como a criação os faz, pôs os dois cães no meio do mercado e entre eles uma sopa e uma lebre; um

correu para o prato e o outro para a lebre embora, diz ele, fossem irmãos. Portanto, com suas leis e seu

governo, ele criou e formou tão bem os lacedemônios que cada um deles preferiria morrer mil mortes a

reconhecer outro senhor que a lei e a razão.

Tenho prazer ao relembras as palavras que outrora disseram um dos favoritos de Xerxes, o grande rei dos

Persas, e dois Lacedemônios. Quando Xerxes aparelhava seu grande exército para conquistar a Grécia,

enviou seus embaixadores às cidades gregas pedindo água e terra: era a maneira que os Persas tinham de

intimar as cidades à rendição. Não enviou a Atenas nem a Esparta porque os que seu pai Dario enviara,

os Atenienses e Espartanos haviam lançado nos fossos uns, nos poços ou outros, dizendo-lhes que

valentemente pegassem ali água e terra para levar a seu príncipe; essa gente não podia suportar que

sequer através da fala se tocasse em sua liberdade. Por terem agido assim, os Espartanos souberam que

haviam incorrido na ira dos deuses, até de Taltíbio, o deus dos arautos; e para apaziguá-los ousaram

enviar a Xerxes dois de seus cidadãos para que a ele se apresentassem e que fizesse deles o que quisesse,

sendo assim recompensado pelos embaixadores de seu pai que haviam matado. Dois espartanos, um

chamado Espéritas e outro Búlis, ofereceram-se para ir fazer tal pagamento; de fato foram e, a caminho,

chegaram ao palácio de um Persa que se chamava Hidarnes e era administrador do rei para todas as

cidades da Ásia que se encontram à beira-mar. Este os recebeu com honrarias e grande amabilidade; e

após várias palavras, uma puxando a outra, perguntou-lhes por que recusavam tanto a amizade do rei.

Vede, Espartanos, disse ele, e através de mim reconhecei como o rei sabe honrar os que o defendem e

pensai que se dele dependêsseis faria o mesmo convosco; se dele dependêsseis e se ele vos tivesse

conhecido, não há dentre vós quem não seria senhor de uma cidade da Grécia. Quanto a isso, Hidarnes,

não poderias dar-nos bom conselho, disseram os Lacedemônios, pois tentaste o bem que nos prometes;

mas aquele que gozamos, não sabes o que é; conheceste o favor do rei; mas da liberdade nada sabes - que

gosto tem, como é doce. Ora, se dela tivesse provado, tu mesmo nos aconselharias a defendê-la, não com

a lança e o escudo mas com unhas e dentes. Só o Espartano dizia o que era preciso dizer; mas certamente

ambos falavam como haviam sido criados. Pois não era possível que o Persa lamentasse a liberdade, não

a tendo tido nunca, nem que o Lacedemônio suportasse a sujeição, tendo provado da franquia.

Quando Catão, o uticano, ainda criança e debaixo de vara, com freqüência ia e vinha em caso do ditador

Sila, jamais lhe fechava a porta, em razão do lugar e da casa de onde procedia como também porque

eram parentes próximos. Seu mestre sempre o acompanhava quando lá ia, como estão acostumadas as

crianças de família ilustre. Observou que em casa de Sila, em sua presença ou por ordem sua,

prendiam-se uns, condenavam-se outros, um era banido, outro estrangulado, um pedia o confisco de um

cidadão, outro a cabeça: em suma, tudo se passava ali como se fosse não a casa de um oficial de cidade,

mas de um tirano de povo; e não era um tribunal de justiça, mas uma oficina de tirania. Disse então a seu

mestre o jovem rapaz: por que não me dais um punhal? Eu o esconderei sob minha toga; entro com

freqüência no quarto de Sila antes dele levantar; tenho o braço bastante forte para livrar a cidade dele. Eis

aí com certeza uma fala de Catão: era o começo desse personagem digno de sua morte. E, no entanto, que

não se diga seu nome nem seu país, que se conte apenas o fato como é - a coisa falará por si; e se

adivinhará que era Romano, nascido em Roma, quando esta era livre. Por que tudo isto? Por certo não

porque eu estime que o país e a terra queiram dizer alguma coisa; pois em todas as regiões, em todos os

ares, amarga é a sujeição e aprazível ser livre; mas porque em meu entender deve-se Ter piedade

daqueles que ao nascer viram-se com o jugo no pescoço: ou então que sejam desculpados, que sejam

perdoados, pois não tendo visto da liberdade sequer a sombra e dela não estando avisados, não percebem

que ser escravos lhes é um mal. Como diz Homero dos Cimérios, se houvesse algum país onde o sol se

mostrasse de outro modo que a nós e depois de tê-los iluminado por seis meses seguidos os deixasse

dormente na escuridão sem vir revê-los o outro meio ano - seria de se espantar se os que tivessem

nascido durante a longa noite não tivessem ouvido falar da claridade, se não tendo visto dias se

acostumassem ás trevas em que nasceram sem desejar a luz? Nunca se lamenta o que nunca se teve e o

pesar só vem depois do prazer; e com o conhecimento do mal sempre está a lembrança da alegria que

passou. A natureza do homem é mesmo de ser franco e querer sê-lo; mas, também sua natureza é tal que

naturalmente ele conserva a feição que a educação lhe dá.

Portanto, digamos então que ao homem todas as coisas lhe são como que naturais; nelas se cria e

acostuma; mas só ele é ingênuo a isso - a que o chama sua natureza simples e inalterada; assim, a

primeira razão da servidão voluntária é o costume - como os mais bravos courtaus* (*cavalos de orelhas

e crina cortadas) que no início mordem o freio e depois descuram; e onde outrora escoiceavam contra a

sela, agora se ostentam nos arreios e soberbos pavoneiam-se sob a barba. Eles dizem que sempre foram

súditos, que seus pais viveram assim; pensam que são obrigados a suportar o mal, convencem-se com

exemplos e ao longo do tempo eles mesmos fundam a posse dos que os tiranizam; mas como em verdade

os anos nunca dão o direito de malfazer, aumentam a injúria. Sempre se encontra alguns mais bem

nascidos que sentem o peso do jugo e não podem se impedir de sacudi-lo, que jamais se acostumam com

a sujeição e que sempre, como Ulisses - que por mar e terra sempre procurava ver a fumaça de sua casa -

não podem se impedir se atentar para seus privilégios naturais e de se lembrar de seus predecessores bem

como de seu primeiro der. De bom grado são estes que, tendo entendimento nítido e espírito clarivedente,

não se contentam, como a grande populaça, em olhar o que está diante dos pés se não divisam atrás e na

frente e só rememoram ainda as coisas passadas para julgar as do tempo vindouro e para medir as

presentes; são estes que, tendo a cabeça por si mesmos bem feita, ainda a poliram com o estudo e o saber.

Estes, mesmo que a liberdade estivesse inteiramente perdida e de toda fora do mundo, a imaginam e a

sentem em seu espírito, e ainda a saboreiam; e a servidão não é de seu gosto por mais que esteja vestida.

O grão-turco percebeu bem isto; que os livros e a doutrina dão aos homens, mais que qualquer outra

coisa, o sentido e o entendimento para se reconhecerem e odiar a tirania; averiguo que em suas terras ele

não tem sábios, nem os quer. Ora, comumente, ficam sem efeito o bom zelo e afeição dos que apesar do

tempo conservaram a devoção à franquia, por mais numerosos que sejam, porque não se conhecem; sob o

tirano, é-lhes tirada toda a liberdade de fazer, de falar, e quase de pensar: todos se tornam singulares em

suas fantasias. Portanto, Momo, o deus zombeteiro, não zombou demais quando censurou o homem que

Vulcano fizera por não Ter-lhe posto uma janelinha no coração para que por aí se pudesse ver seus

pensamentos. Fizeram questão de dizer que Bruto, Cássio e Casco, quando empreenderam a libertação de

Roma, ou melhor, de todo o mundo, não quiseram que Cícero - esse grande defensor do bem público, se

já houve algum - tomasse parte e estimaram seu coração fraco demais para um feito tão elevado;

confiavam muito em sua vontade mas não estavam certos de sua coragem. E, todavia, quem quiser

percorrer os feitos do passado e os anais antigos encontrará poucos ou nenhum dos que, vendo seu país

maltratado e em más mãos, tendo decidido com boa intenção, íntegra e não dissimulada, libertá-lo, não

tenham conseguido; e a quem a própria liberdade, para se tornar visível, não tenha ombreado. Como

Harmódio, Aristogitão, Trasíbulo, Bruto, o velho, Valério e Dion porque pensaram virtuosamente,

afortunadamente executaram; nesses casos, a bom querer fortuna quase nunca falha. Bruto, o jovem, e

Cássio eliminaram com muito êxito a servidão; mas reconduzindo a liberdade, morreram não

miseravelmente (pois que blasfêmia dizer que houve algo miserável nessa gente, em sua vida e em sua

morte!) mas com certeza para grande prejuízo, perpétuo infortúnio e total ruína da república que, ao que

parece, foi enterrada com eles. As outras empresas que mais tarde foram feitas contra os imperadores

romanos não passavam de conjuração de gente ambiciosa, à qual não se deve lamentar os inconvenientes

que lhe sucederam, pois salta aos olhos que desejavam não eliminar mas mudar a coroa, que pretendiam

banir o tirano e reter a tirania. Estes, eu mesmo não gostaria que fossem bem sucedidos e estou contente

de que, através de seu exemplo, tenham mostrado que não se deve abusar do santo nome da liberdade

para má empresa.

Mas voltando à nossas palavras, das quais quase me perdera: a primeira razão por que os homens servem

de bom grado é que nascem servos e são criados como tais. Desta decorre uma outra: que sob os tiranos

as pessoas facilmente se tornam covardes e efeminadas. Disso sei maravilhosamente graças a Hipócrates,

o avô da medicina, que esteve atento e assim o disse em um dos livros que estabelece das doenças. Esse

personagem certamente tinha um coração de todo bom e o demonstrou bem quando o grande rei quis

atraí-lo para junto de si à força de ofertas e grandes presentes; respondeu-lhe francamente que teria

escrúpulos em meter-se a curar os bárbaros que queriam matar os Gregos e bem servir com sua arte

àquele que da Grécia queria se servir. A carta que lhe enviou pode ser vista ainda hoje entre suas obras e

testemunhará para sempre seu bom coração e sua nobre natureza. Ora, é certo, portanto, que com a

liberdade se perde de uma só vez a valentia. A gente subjugada não tem júbilo nem furor no combate:

parte para o perigo quase como que amarrada, toda por demais embotada, e não sente ferver em seu

coração o ardor da liberdade que faz desprezar o perigo e dá vontade de ganhar a honra e a glória numa

bela morte entre seus companheiros. Entre gente livre é à porfia, cada qual melhor, cada um pelo bem

comum, cada um por si; todos esperam Ter sua parte no mal da derrota ou no bem da vitória; mas a gente

subjugada, além dessa coragem guerreira, também perde a vivacidade em todas as outras coisas. Disso

muito bem sabem os tiranos, e ao vê-la tomando essa feição, ainda a ajudam para que afrouxe mais.

Xenofonte, historiador grave e de primeira linha entre os Gregos, fez um livro onde faz Simônides falar

com Hierão, tirano de Siracusa, a respeito das misérias do tirano. O livro é cheio de advertências boas e

graves e que, em meu entender, têm graça na medida do possível. Prouvera deus que os tiranos que

sempre existiram o tivessem posto diante dos olhos e o tivessem usado como espelho! Não posso

acreditar que não teriam reconhecido suas verrugas e tido vergonha de suas manchas. Nesse tratado ele

conta o pesar em que se encontram os tiranos que, fazendo mal a todos, são obrigados a temer a todos;

entre outras coisas, diz que ou maus reis servem-se de estrangeiros na guerra e os assoldadam pois não

ousam a confiança de pôr armas na mão de sua gente, a quem fizeram mal. (De fato, houve reis bons que

tiveram nações estrangeiras a seu soldo, até mesmo franceses, ainda mais outrora do que hoje; mas com

outra intenção: a fim de proteger os seus, pois para poupar os homens estimavam nula a perda do

dinheiro. É o que dizia Cipião, o grande Africano, creio eu: que preferiria Ter salvo um cidadão a Ter

derrotado cem inimigos). Mas por certo está confirmado que o tirano jamais pensa que seu poderio esteja

assegurado, senão quando chegou ao ponto de não Ter às suas ordens homem de valor. Portanto, a ele se

dirá com razão o mesmo que Trasão, onde Terêncio se gaba de ter objetado ao senhor dos Elefantes:

Porque sois tão audaz

Os bichos amestrais.

Porém essa artimanha de tiranos para bestializar seus súditos não pode ser mais claramente conhecida

que através do que Ciro fez com os Lídios depois de Ter-se assenhorado de Sardes, principal cidade da

Lídia, de Ter dominado Creso, esse rei tão rico, e de tê-lo levado discricionariamente. Trouxeram-lhe

notícias de que os Sardos tinham se revoltado. Sua autoridade os teria submetido prontamente; mas como

não queria saquear uma cidade tão bela nem inquietar-se sempre com o mantimento de um exército para

guardá-la, descobriu um grande expediente para apoderar-se dela: ali estabeleceu bordéis, tavernas e

jogos públicos, e proclamou uma ordenação que os habitantes tiveram de acatar. Ficou tão satisfeito com

tal guarnição que desde então nunca mais foi preciso puxar da espada contra os Lídios: essa gente pobre

e miserável divertia-se inventando todo tipo de jogo, de tal modo que os Latinos tiraram daí sua palavra,

e o que chamamos passatempo eles chamam Ludi, como se quisessem dizer Lidi. Não todos os tiranos

declararam tão expressamente que queriam efeminar sua gente; mas, de fato, o que este ordenou

formalmente e sob sua autoridade, a maioria perseguiu. Na verdade, o natural da arraia miúda, cujo

número é cada vez maior nas cidades, é que seja desconfiada para com aquele que a engana. Não penseis

que pássaro algum melhor caia no laço, nem que peixe algum pela gulodice da isca mais depressa se

aferre ao anzol pois, como se diz, todos os povos são prontamente logrados para a servidão pela primeira

pluma que lhes passam na boca; e é maravilhoso como cedem rápido, contanto que lhes façam cócegas.

Os teatros, os jogos, as farsas, os espetáculos, os gladiadores, os bichos estranhos, as medalhas, os

quadros e outras drogas que tais eram para os povos antigos as iscas da servidão, o preço de sua

liberdade, as ferramentas da tirania. Os tiranos antigos tinham esse meio, essa prática, esses atrativos

para adormecer seus súditos sob o jugo. Assim, achando bonitos esses passatempos, entretidos por um

prazer vão que passava diante de seus olhos, os povos abobados acostumavam-se a servir tão totalmente

e até pior do que as criancinhas que aprendem a ler vendo as brilhantes imagens do livro iluminados. Os

tiranos romanos descobriram ainda um outro ponto: dar festas freqüentes para as decúrias públicas,

abusando como podiam dessa canalha que, mais que qualquer outra coisa, não resiste o prazer da boca. O

mais prudente e esperto dentre eles não teria largado sua tigela de sopa para recobrar a liberdade da

república de Platão. Os tiranos prodigalizavam um quarto de trigo, um sesteiro de vinho e um sestércio; e

então dava pena ouvir gritar: Viva o rei! Os broncos não percebiam que apenas recobravam parte do que

era seu e que até mesmo no que recobravam o tirano não lhes teria dado se antes não lhes tivesse tirado.

O que hoje tinha apanhado o sestércio e se empanturrado no festim público abençoando Tibério e Nero e

sua bela liberalidade, no dia seguinte, obrigado a abandonar seus bens à cobiça deles, seus filhos à

luxúria, seu próprio sangue à crueldade desses magníficos imperadores, ficava mudo como uma pedra e

imóvel como um tronco. O povo sempre teve isto: ao prazer que não pode receber honestamente, é de

todo aberto e dissoluto; e ao erro e à dor que pode sofrer honestamente, insensível. Agora não vejo

ninguém que ouvindo falar de Nero não trema à simples menção a esse monstro vil, essa ignóbil e

imunda peste do mundo; e no entanto, desse aí, desse incendiário, desse carrasco, dessa besta feroz,

pode-se afirmar que, após sua morte, tão vil quanto sua vida, o nobre povo romano teve tanto desgosto ao

relembrar os jogos e os festins que esteve a ponto de pôr luto, como escreveu Cornélio Tácito, autor bom

e grave, e dos mais seguros. O que não é de se estranhar, visto o que esse mesmo povo fizera antes, na

morte de Júlio César, que revogou as leis e a liberdade. Personagem que, parece-me, não tinha valor

algum, pois sua própria humanidade, que tanto apregoam, foi mais prejudicial que a crueldade do mais

selvagem tirano que já houve; porque, na verdade, foi essa sua doçura venenosa que para o povo romano

adoçou a servidão. Mas após sua morte, esse povo que tinha ainda na boca os seus banquetes e no

espírito a lembrança de sua prodigalidade, para homenageá-lo e transformá-lo em cinzas rivalizava-se

amontoando os bancos da praça e mais tarde erguendo-lhe uma coluna como ao pai do povo (assim dizia

o capitel) e prestando-lhe homenagem póstuma maior do que por direito devia a homem no mundo, salvo

por acaso aos que o tinham matado. Os imperadores romanos também não se esqueceram do seguinte: de

comumente tomar o título de Tribuno do povo, tanto porque esse ofício era considerado santo e sagrado

como porque era estabelecido para a defesa e proteção do povo. E por meio dos favores desse ofício

asseguravam-se de que o povo confiaria mais neles, como se dele devessem ouvir o nome e não, ao

contrário sentir os efeitos. Não são muito melhores os que hoje não fazem mal algum, mesmo

importante, sem antes fazer passar algumas palavras bonitas sobre o bem público e a tranqüilidade geral.

Pois, ó Longa, conhecer bem o formulário e certas passagens do qual poderiam ser servir bastante

sutilmente - mas, com certeza, na maior parte não pode haver finura onde há tanto despudor. Os reis da

Assíria e também, depois deles, os de Média só apresentavam-se em público o mais tarde que podiam,

para fazer a populaça se perguntar se não eram algo mais que homens e deixar nesse devaneio a gente de

bom grado imaginativa para com as coisas que não pode julgar com os olhos. Assim, com esse mistério,

tantas nações, que durante muito tempo pertenceram ao império assírio, acostumavam-se a servir e

serviam com mais boa vontade por não saberem que senhor tinham nem a muito custo se tinham, e todos

temiam acreditando em um que ninguém jamais vira. Os primeiros reis do Egito só se mostravam

portando ora um gato, ora um ramo, ora fogo sobre a cabeça, e desse modo mascaravam-se e fingiam-se

de mágicos. E assim, pela estranheza da coisa, suscitavam em seus súditos alguma reverência e

admiração; mas, no meu entender, teriam apenas se prestado ao passatempo e à troça na gente que não

tivesse sido tola ou sujeita demais. Dá pena ouvir falar de quantas coisas os tiranos do passado utilizavam

para fundar sua tirania, de quantas mesquinharias se serviam, encontrando essa populaça sempre às

ordens, e que vinha cair na rede mesmo quando mal soubessem armá-la; que sempre enganaram tão

facilmente, a ponto de nunca tê-la sujeitado tanto como quando mais zombavam dela.

O que direi de um outro belo conto em que caíram os povos antigos? Acreditaram piamente que o dedão

de Pirro, rei dos Epirotas, fazia milagres e curava os doentes das vísceras; enriqueceram ainda mais o

conto: que depois de terem queimado o corpo morto todo o dedo achava-se entre as cinzas, salvo apesar

do fogo. O próprio povo tolo sempre faz as mentiras para depois acreditar nelas; muita gente assim

escreveu, mas salta aos olhos que reuniu isso a partir dos rumores de cidade e do falatório da populaça.

Vespasiano fez maravilhas ao voltar da Assíria e passar por Alexandria para ir a Roma aposerar-se do

império: endireitava os coxos, tornava clarividentes os cegos e muitas outras belezas cujo logro quem

não conseguia enxergar era, em meu entender, mais cego que aqueles a quem curava. Os próprios tiranos

achavam bem estranho que os homens pudessem suportar um homem fazendo-lhes mal; queriam muito

pôr a religião na frente como anteparo, e se possível, tomar emprestada alguma amostra da divindade

para o mantimento de sua miserável vida. Entre eles Salmoneu - se se acredita na sibila de Virgílio em

seu inferno - que, por Ter zombado assim das pessoas e por Ter querido fazer-se de Júpiter, agora presta

contas e ela o vê no fundo do inferno:

Vi Salmoneu que sofreu cruel castigo, enquanto imitava as chamas de Júpiter e o ruído do

Olimpo. Levado por quatro cavalos e agitando o archote, atravessava, em triunfo, os povos

gregos e a cidade de Elide, reclamando honras divinas. Louco! Acreditava que com o

tropear dos cascos dos cavalos conseguiria imitar a tempestade e o raio inimitável. O Pai

onipotente, porém, atirou-lhe, de dentre as nuvens espessas, não um archote, não um facho,

mas um raio e o precipitou em um horrendo turbilhão*. (*Virgílio: Eneida. Trad. David

Jardim Jr., V Biblioteca Clássicos de Ouro Universais. Ed. De Ouro, Rio de Janeiro. S/d.)

Se este que apenas se fazia de tolo está sendo agora tão bem tratado lá embaixo, creio que os que

abusaram da religião para serem maus achar-se-ão em situação ainda melhor.

Os nossos semearam na França algo parecido: sapos, flores de lis, a âmbula e a auriflama; os que de

minha parte, como sói acontecer, não quero descrer, pois até agora nem nós nem nossos antepassados

tivemos ocasião para suspeitar, pois sempre tivemos reis tão bons na paz e tão intrépidos na guerra que,

embora nasçam reis, parece que não foram feitos como os outros pela natureza mas escolhidos antes de

nascer pelo deus todo-poderoso para o governo e proteção do reino. E ainda que assim não fosse, não

gostaria de entrar na liça por causa disso para discutir a verdade de nossas histórias nem descascá-las tão

intimamente, para não tolher esse belo jogo onde nossa poesia francesa poserá esgrimir-se bem, agora

não mais costurada mas, ao que parece, renovada por nosso Ronsard, nosso Baif, nosso du Bellay,

adiantando tanto a nossa língua que, ouso esperar, em breve diante de nós os Gregos e os Latinos talvez

só tenham o direito de primogenitura. E com certeza eu prejudicaria muito nossa rima (com prazer uso

essa palavra e ele não me desagrada; pois, embora vários a tivessem tornado mecânica, vejo contudo

bastante gente capaz de enobrecê-la novamente e restituir-lhe sua glória primeira), digo: eu a prejudicaria

muito se agora dela suprimisse os belos contos do rei Clóvis, nos quais parece-me que já vejo quão

prazerosamente, quão à vontade alegrar-se-à a veia de nosso Ronsard em sua Franciade. Sou atento ao

seu alcance, conheço o espírito agudo, sei da graça do homem: ele usará a auriflama como os Romanos

suas ancilas.

E os escudos atirados do céu, diz Virgílio. Cuidará tão bem de nossa Âmbula como os Atenienses do

cesto de Erictônio. Fará falar de nossas armas como eles de sua oliva, que afirmam encontrar-se ainda na

torre de Minerva. Eu seria por certo ultrajante em querer desmentir nossos livros e correr tanto nos cursos

de nossos Poetas. Mas voltando aonde não sei como tinha desviado o fio de minhas palavras: nunca

houve como os tiranos que, a fim de se manterem, se esforçam para acostumar o povo a eles não só por

obediência e servidão, mas também por devoção. O que eu disse até aqui quanto ao que ensina a gente a

servir mais voluntariamente só serve então aos tiranos para o povo miúdo e grosseiro.

Mas agora chego a um ponto que em meu entender é a força e o segredo da dominação, o apoio e

fundamento da tirania. No meu juízo, muito se engana quem pensa que as alabardas, os guardas e a

disposição das sentinelas protegem os tiranos. Creio que a eles recorrem mais como formalidade e

espantalho do que por confiança. Os arqueiros proíbem a entrada do palácio aos mal-vestidos que não

têm meios, não aos bem-armados que podem fazer alguma empresa. Certamente é fácil contar que entre

os imperadores romanos não forma tantos os que conseguiram escapar de algum perigo graças a seus

guardas quanto os que foram mortos por seus próprios arqueiros. Não são os bandos de gente a cavalo,

não são as companhias a pé, não são as armas que defendem o tirano; de imediato, não se acreditará

nisso, mas com certeza é verdade. São sempre quatro ou cinco que mantêm o tirano; quatro ou cinco que

lhe conservam o país inteiro em servidão. Sempre foi assim: cinco ou seis obtiveram o ouvido do tirano e

por si mesmos dele se aproximaram; ou então por ele forma chamados para serem os cúmplices de suas

crueldades, os companheiros de seus prazeres, os proxenetas de suas volúpias, e sócios dos bens de suas

pilhagens. Tão bem esses seis domam seu chefe, que ele deve ser mau para a sociedade não só com suas

próprias maldades, mas também com as deles. Esses seis têm seiscentos que crescem debaixo deles e

fazem de seus seiscentos o que os seis fazem ao tirano. Esses seiscentos conservam debaixo deles seis

mil, cuja posição elevaram; aos quais fazem dar o governo das províncias ou o manejo dos dinheiros para

que tenham na mão sua avareza e crueldade e que as exerçam no momento oportuno; e, aliás, façam

tantos males que só possam durar à sua sombra e isentar-se das leis e da pena por seu intermédio. Grande

é o séquito que vem depois e quem quiser divertir-se esvaziando essa rede não verá os seis mil mas os

cem mil, os milhões que por essa corda agarram-se ao tirano servindo-se dela como Júpiter em Homero,

que se gaba de trazer a si todos os deuses ao puxar a corrente. Daí se originava o crescimento do Senado

sob Júlio, o estabelecimento de novas posições, o surgimento de ofícios; considerando bem, certamente

não uma reforma da justiça mas novos sustentáculos da tirania. Em suam: que se chegue lá por favores

ou subfavores, os ganhos ou restolhos que se tem com os tiranos, ocorre que afinal há quase tanta gente

para quem a tirania parece ser proveitosa quanto aqueles para quem a liberdade seria agradável. Como

dizem os médicos, se há em nosso corpo alguma coisa estragada, logo um outro lugar onde nada está

acontecendo rapidamente se dirige para a parte bichada; do mesmo modo, logo que um rei declarou-se

tirano, tudo que é ruim, toda a escória do reino - não falo de um monte de gatunos e desorelhados que

numa república não podem fazer muito mal nem bem, mas dos que são manchados por ambição ardente e

notável avareza - reúnem-se à sua volta e o apoiam para participarem da presa e serem eles mesmos

tiranetes sob o grande tirano. Os grandes ladrões e os famosos corsários fazem assim: uns desnudam o

país, os outros perseguem os viajantes, uns armam emboscadas, os outros estão á espreita, os outros

massacram, os outros esfolam; e embora existam primazias entre eles e uns sejam apenas criados e os

outros chefes do bando, no final não há um que não se sinta parte, senão do espólio principal, ao menos

da busca. Contam que os piratas Cilicianos não só reuniram-se em tal número que foi preciso enviar

Pompeu, o grande, contra eles, mas também que atraíram para uma aliança várias belas cidades e grandes

centros em cujos portos punham-se a salvo ao voltarem das incursões, dando-lhes como recompensa

algum proveito da receptação da pilhagem.

Assim o tirano subjuga os súditos uns através dos outros e é guardado por aqueles de quem deveria se

guardar, se valesses alguma coisa; mas, como se diz, para rachar lenha é preciso cunhas da própria lenha.

Eis aí seus arqueiros, seus guardas, seus alabardeiros; não que eles mesmos às vezes não sofram por

causa dele; mas esses perdidos e abandonados por deus e pelos homens ficam contentes de suportar o

mal para fazê-lo, não àquele que lhes malfez, mas àqueles que suportam como eles e que nada podem

fazer. Vendo porém essa gente que gera o tirano para se encarregar de sua tirania e da servidão do povo,

com freqüência sou tomado de espanto por sua maldade e às vezes de piedade por sua tolice. Pois, em

verdade, o que é aproximar-se do tirano senão recuar mais de sua liberdade e, por assim dizer, apertar

com as duas mãos e abraçar a servidão? Que ponham um pouco de lado sua ambição e que se livrem um

pouco de sua avareza, de depois, que olhem-se a si mesmos e se reconheçam; e verão claramente que os

aldeões, os camponeses que espezinham o quanto podem e os tratam pior do que a forçados ou escravos -

verão que esses, assim maltratados, são no entanto felizes e mais livres do que eles. O lavrador e o

artesão, ainda que subjugados, ficam quites ao fazer o que lhes dizem; mas o tirano vê os outros que lhe

são próximos trapaceando e mendigando seu favor; não só é preciso que façam o que diz mas que

pensem o que quer e amiúde, para satisfazê-lo, que ainda antecipem seus pensamentos. Para eles não

basta obedecê-lo, também é preciso agradá-lo, é preciso que deixam seu gosto pelo dele; e já que se

aprazem com o prazer dele, que deixam seu gosto pelo dele, que forçam sua compleição, que despem o

seu natural, é preciso que estejam atentos às palavras dele, a voz dele, aos sinais dele; e aos olhos dele;

que não tenham olho, pé, mão, que tudo esteja alerta para espiar as vontades dele e descobrir seus

pensamentos. Isso é viver feliz? Chama-se isso, viver? Há no mundo algo menos suportável do que isso,

não digo para um homem de coração, não digo para um bem-nascido, mas apenas para um que tenha o

senso comum ou nada mais que a face do homem? Que condição é mais miserável que viver assim, nada

tendo de seu recebendo de outrem sua satisfação, sua liberdade, seu corpo e sua vida?

Mas eles querem servir para Ter bens, como se não pudessem gerar nada que fosse deles, pois nada

podem dizer de si que sejam de si mesmos; e como se alguém pudesse Ter algo de seu sob um tirano,

querem fazer com que os bens sejam deles e não se lembram que são eles que lhe dão a força para tirar

tudo de todos e não deixar nada de que se possa dizer que seja de alguém. Vêem que nada senão os bens

torna os homens sujeitos à crueldade dele, que para ele só a riqueza é crime digno de morte. Ama só as

riquezas e só despoja os ricos, que ainda assim vêm se apresentar como que diante do açougueiro, gordos

e fortes, para se oferecerem e despertarem seu apetite. Esses favoritos não devem se lembrar tanto dos

que em torno dos tiranos receberam muitos bens, mas sim dos que tendo acumulado durante algum

tempo ali perderam depois os bens e vidas. Não deve passar-lhes tanto pela cabeça quantos ali receberam

riquezas, mas quão poucos se conservaram. Que se percorram todas as histórias antigas, que se

considerem as de nossa lembrança, e ver-se-á plenamente como é grande o número dos que, tendo ganho

por meios espúrios a confiança dos príncipes, tendo usado de sua maldade ou abusado de sua

simplicidade, finalmente foram por eles mesmos aniquilados; e assim como neles tinham achado um

meio para elevá-los, mais tarde neles também encontraram a inconstância que os destruiu. Com certeza,

entre as muitas pessoas que já se acharam próximas de tantos reis maus, poucas ou quase nenhuma foram

as que alguma vez não experimentaram em si mesmas a crueldade do tirano, que antes haviam atiçado

contra os outros: tendo enriquecido com os despojos de outrem à sombra de seu favoritismo, no mais das

vezes elas acabam enriquecendo-o com seus despojos.

As próprias pessoas de bem - se é que às vezes existe alguma amada pelo tirano -, por mais que sejam os

primeiros em sua graça, por mais que nelas brilhem a virtude e a integridade que impõem algum respeito

até aos mais malvados quando vistas de perto, as pessoas de bem, digo, aí não poderiam durar; é preciso

que compartilhem do mal comum e que sintam a tirania em seus propósitos. Um Sêneca, um Burrus, um

Traséas, esse terno de pessoas de bem, as quais - aliás, o infortúnio das duas primeiras aproximou do

tirano e lhes pôs nas mãos a condução de suas coisas, ambos por ele estimados, queridos ambos, e um

deles ainda o havia criado e tinha como garantia de sua amizade a educação de sua infância - pois esses

três bastam para testemunhar com sua morte cruel como há pouca segurança no favor de um mau senhor.

E, na verdade, que amizade se pode esperar daquele que tem mesmo o coração tão duro para odiar seu

reino, o qual só faz obedecê-lo, e que ainda por se saber incapaz de amar empobrece a si mesmo e destrói

seu império?

Ora, se se quer dizer que eles enfrentaram esses inconvenientes por serem gente de bem, que se olhe

francamente em torno do próprio, e ver-se-á que não duraram mais os que caíram em suas graças e se

mantiveram por meios espúrios. Quem já ouviu falar de amor mais desenfreado, de afeição mais

persistente, quem já leu sobre um homem mais obstinadamente encarnado numa mulher do ele em

Popéa? Ora, mais tarde ela foi envenenada por ele próprio. Sua mãe, Agripina, tinha matado o marido,

Cláudio, para lhe dar o lugar no império; para obesquiá-lo, ele nunca criara dificuldade de espécie

alguma, nem sofrimento. Então seu próprio filho, sua cria, o Imperador feito por sua mão, depois de lhe

faltar muitas vezes, afinal tirou-lhe a vida; e na ocasião não houve quem não dissesse que ela bem

merecera essa punição, se tivesse sido pelas mãos de qualquer um que não aquele a quem ela havia dado

a vida. Quem já foi mais fácil de manipular, mais simples, melhor dizendo, mais verdadeiramente parvo

que o imperador Cláudio? Quem já foi mais traído pela mulher do que ele por Messalina? Finalmente a

pôs nas mãos do carrasco. Quando a têm, a simplorice sempre fica nos tiranos para não poderem fazer o

bem; mas não sei como, por menor que seja o seu espírito, este afinal acorda para usar da crueldade até

contra aqueles que lhe são próximos. Bastante comum é o dito espirituoso desse outro que, vendo

descoberta a garganta de sua mulher, a quem amava muito e sem a qual parece que não teria podido vir,

acariciou-a com esta promessa: se eu ordenar, daqui a pouco esse belo pescoço será cortado. Eis por que,

em sua maior parte, os tiranos antigos eram comumente mortos por seus maiores favoritos que, tendo

conhecido a natureza da tirania, não podiam assegurar-se tanto da vontade do tirano, bem como

desconfiavam de seu poderio. Assim foi morto Domiciano por Estéfano, Cômodo por uma de suas

próprias amantes, Antonino por Macrino, como quase todos os outros.

É certamente por isso que o tirano nunca é amado, nem ama: a amizade é um nome sagrado, é uma coisa

santa; ela nunca se entrega senão entre pessoas de bem e só se deixa apanhar por muita estima; se

mantém não tanto através de benefícios como através de uma vida boa; o que torna um amigo seguro do

outro é o conhecimento que tem de sua integridade; as garantias que tem são sua bondade natural, a fé e a

constância. Não pode haver amizade onde está a crueldade, onde está a deslealdade, onde está a injustiça;

entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma companhia; eles não se entre-amam, mas

se entre-temem; não são amigos, mas cúmplices.

Ora, mesmo quando isso não impedisse, ainda seria difícil encontrar um amor seguro em um tirano, pois,

estando acima de todos e não tendo companheiro, já está além dos limites de amizade, cuja verdadeira

presa é a igualdade, que jamais quer claudicar, e caminha sempre igual. Eis porque há entre os ladrões

(dizem) alguma fé na partilha do roubo: porque são pares e companheiros; e se não se amam entre si, ao

menos se temem e não querem tornar menor a sua força desunindo-se. Mas os que são favoritos do tirano

nunca podem Ter certeza alguma disso, posto que aprendeu com eles mesmos que tudo pode e nada há,

direito ou dever, que o obrigue, no arrogo de fazer sua vontade contar como razão, e de não Ter

companheiro algum mas de ser de todos senhor. Não é, portanto uma lástima que, vendo tantos exemplos

notórios, vendo o perigo tão presente, ninguém queira aprender à custa de outrem e que tanta gente de tão

bom grado se aproxime dos tiranos? Que não haja um só que tenha a ponderação e a coragem de lhes

dizer o que diz a raposa ao leão que fingia-se de doente, como sustenta o conto: de bom grado iria te ver

em tua cova; vejo muitas pegadas de bichos que vão até a ti; mas não vejo uma só que volte para

trás?(pág.36; p.2)